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cinema

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Serviço Involuntário de Utilidade Pública

Cena de 'Santiago', de João Moreira Salles.

por Tiago Lopes

Acho que certos documentaristas brasileiros deveriam ser distribuídos em algumas cidades como o é o Bolsa-família: as pessoas têm o direito de possuírem um Eduardo Coutinho ou um João Moreira Salles por perto para que esses possam atenuar as dificuldades de suportar a vida. Não que eles tenham que distribuir quantias irrisórias de dinheiro para a vida ser menos insuportável, eles só precisam fazer o que fazem melhor: tornar certas pessoas, costumeiramente conhecidas como “gentinhas”, em seres realmente admiráveis, nem que seja pelo tempo em que estão sendo expostas na tela, porque, mesmo que seja por duas horas, dá para o telespectador fazer uma generalização de bom grado e renovar a fé na humanidade ao menos por três semanas depois de ver um desses filmes.

Tome como um bom exemplo Jogo de Cena. É um filme genial e, antes de ceder gentilmente esse adjetivo um tanto banalizado nos dias de hoje a esse documentário, tive que revê-lo uma duas vezes para não diminuir seu tamanho chamando-o apenas de “ridiculamente ótimo”, mas genial mesmo. O Coutinho, diretor desse documentário, usou como base depoimentos de mulheres que descreviam situações difíceis na vida de autênticas representantes da “gentinha”: gravidez indesejada, brigas familiares, prostituição e mais tantas outras coisas que assolam a cabeça de empregadas Brasil afora. Chamou algumas atrizes profissionais (Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres) e fez com que esses depoimentos fossem interpretados tanto pelas profissionais como pelas supostas donas dessas experiências. Em nenhum momento você descobre quem está falando a verdade, ou se tal história foi realmente vivida por quem está narrando. Mas, da mais banal e estúpida experiência a mais complexa, todas são emocionantes de uma maneira única. Não importa se quem está narrando é uma atriz com mais de 50 anos de experiência ou uma suburbana de 15 anos, em algum momento os olhos ficam genuinamente marejados.

João Moreira Salles nos fez acreditar que nunca foi muito afeito a embelezamentos da plebe ignara. Ficou famoso por: desnudar coisas, como a guerra entre o tráfico carioca e a polícia em Notícias de Uma Guerra Particular; enfatizar a beleza do que já tinha lá a sua graça no documentário sobre o pianista Nelson Freire; e dar um belo tratamento fotográfico ao maior mantenedor do “gentinha life-style” de todos os tempos, Luís Inácio Lula da Silva, em Entreatos. Em seu último documentário, Santiago, João Moreira Salles dá a entender que sempre quis, desde o começo, aprender a transformar o desinteresse em “ordinary peoples” em algo apreciável e vendável, sem explorar a estética da pobreza. Frustrou-se com o resultado início e se desviou do caminho da luz.

A frustração derivou da primeira tentativa feita por Moreira Salles de contar a história de Santiago Merlo, mordomo da sua família por algumas décadas. Mas o aspecto de “pessoa ordinária” que seu personagem principal guarda é apenas na profissão de serviçal que escolheu seguir. Santiago possuía vasto conhecimento de música erudita e tinha a estranha mania de transcrever páginas e mais páginas de livros que contavam a história de grandes dinastias e linhagens nobres, o que lhe conferia um incomum conhecimento sobre questões que não interessavam a ninguém, mas impressionavam quando respondidas. Não satisfeito com o que fez em 1992, o diretor arquivou as imagens gravadas e só voltou a vê-las novamente quando resolveu fazer Santiago, um filme sobre a frustração de 1992, sobre seu mordomo, sobre sua relação com os membros da sua família e sobre mais um sem-número de temas nascidos da truncada metalinguagem contida na idéia do filme.

O mais interessante desdobramento de Santiago – porque é um filme que te dá tantas opções de escolha quanto boy-bands te ofereciam em 1999, você TEM que dar preferência a alguma – é a exposição da maior falha ocorrida em 1992: como João Moreira Salles, um documentarista que supostamente prezava pela boa ética na feitura de um filme, se intrometia na relação do seu entrevistado com a câmera, que deveria ser a mais livre de interferências possível. Em Santiago, Moreira Salles não só expôs, como dissecou as causas de todo o seu comportamento arrogante para com o mordomo, do jeito abrupto que interferia nos depoimentos dados por Santiago, passando pela maneira como comandava a linguagem corporal do mordomo, até ao cúmulo de interromper o entrevistado quando esse enveredava por um caminho que não lhe interessava. Esse “caminho” era justamente o que Santiago mais ansiava em mostrar e, quando era calado pelo diretor, a expressão de decepção na sua cara provoca uma pena quase insuportável em quem assiste.

Já Eduardo Coutinho possui uma vantagem única em estabelecer com uma rapidez assustadora um vínculo de confiança com seu entrevistado. Nem é por causa de técnicas misteriosas de persuasão não, é só porque ele possui essa cara:

 

 

Impossível não achar que esse senhor já é um amigo íntimo quando ele começa a demonstrar interesse por você, sustentando essa expressão facial simpática e usando um tom de voz sempre agradável, que é capaz de fazer você responder do sofá da sua sala tudo que ele pergunta na tela. Daí para moldar o que seu entrevistado quer falar aos seus interesses (e pessoas ordinárias, na frente de uma câmera, querem fazer biografias em tempo real), Coutinho nem precisa de muita coisa, só fazer as perguntas certas mesmo. Quando o entrevistado já se sente tão íntimo que a única maneira que consegue achar de mostrar uma intimidade ainda mais profunda é cantar para a câmera, surgem aqueles “números musicais” que sempre arrancam umas lágrimas da platéia. Em Jogo de Cena, a “seqüência musical” foi devastadora como pouca coisa que já vi.

Ao fim de cada um desses filmes, sinto que esses diretores acabaram de prestar um grandessíssimo serviço de utilidade pública involuntariamente: tornar mais suportável e manter num nível pacífico a convivência com pessoas que não significam nada pra você e teimam em se colocar no seu campo de visão se comportando de maneira chula e escandalosa. Dá até vontade de dar um grande “boa noite” ao entrar num ônibus e ser educado com todos os presentes depois de ver filmes assim.

Um comentário:

Anônimo disse...

Passagem mal colocada esta da "gentinha".

rodape
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